A tradução quase instantânea de textos para 52 línguas é apenas
o primeiro passo rumo a um comunicador universal em que o idioma
deixa de ser barreira e passa a ser o portal do grande encontro das culturas
O funcionamento do tradutor do Google remete à Pedra de Roseta, o bloco de granito de 1,20 metro de altura que foi encontrado pelo exército de Napoleão, no século XVIII, e serviu de chave para a decifração dos hieróglifos egípcios. A Pedra traz inscrições de um mesmo texto na antiga língua do Egito e em grego. No século XIX, coube aos estudiosos Thomas Young e Jean-François Champollion relacionar os termos dos dois idiomas para desvendar a língua dos faraós. De forma análoga, os computadores do Google trabalham com pares de textos em línguas diferentes e calculam a probabilidade de palavras de uma delas corresponderem a termos da outra (confira o funcionamento). Com base nesses cálculos, o sistema é capaz de, em menos de um segundo, montar textos em 52 línguas, cada vez que um usuário o requisita.
O tradutor do Google está à frente dos rivais. Em pesquisas patrocinadas pelo governo americano, ele supera com frequência ferramentas de outras empresas e universidades. “Ele também é reconhecido como o melhor entre os sistemas comerciais”, diz David Yarowsky, professor de ciência da computação da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Isso significa sobrepujar os rivais Bing Translator, da Microsoft, e Babel Fish, do Yahoo!. “Hoje, a potência da ferramenta está relacionada ao tamanho de seu banco de dados. E também ao uso de supercomputadores, com sua imensa capacidade de processar informações”, explica Helena Caseli, pesquisadora do Laboratório de Linguística Computacional da Universidade Federal de São Carlos. Se são esses os fatores determinantes, é certo que o tradutor vai evoluir. O aumento na capacidade de processar informações dos supercomputadores é garantido pela Lei de Moore – que postula que a capacidade dos chips dobra a cada 24 meses. O banco de dados do Google também cresce continuamente. Ele começou a ser formado em 2006, com textos oficiais da ONU vertidos para seis idiomas. Em seguida, a empresa recorreu a documentos bilíngues de arquivos públicos. Finalmente, mergulhou na internet. Hoje, seus próprios usuários ajudam a ampliar o banco de dados sugerindo traduções alternativas àquelas que lhes são apresentadas. “Há, no entanto, certo limite para essa abordagem”, diz Miles Osborne, pesquisador da Universidade de Edimburgo, na Escócia, que trabalhou no projeto do Google. É por isso que vem sendo estudada a inclusão de regras gramaticais no programa: além dos algoritmos, ele usaria essas regras para compor textos mais fluentes. Hoje, as traduções invariavelmente contêm tropeços de gramática. Assim mesmo, quem se detém em uma página estrangeira, esteja ela escrita em mandarim, africânder, vietnamita, japonês ou hindi, já sabe ao menos sobre o que se fala ali. “Há cinco anos, isso era impossível. Daqui a cinco anos, teremos mais fluência”, afirma David Yarowsky.
À medida que os tradutores avançarem, seus impactos deverão se espalhar pelas mais variadas áreas. No campo acadêmico, por exemplo, o avanço será dramático. “Em algumas áreas, como ciência e tecnologia, as versões automáticas poderão ser até melhores do que as feitas por humanos, pois, para nós, é muito difícil guardar detalhes de temas específicos”, diz Yarowsky. Considere-se que atualmente, nos campos de ciências, tecnologia, finanças e administração, 90% do conteúdo de alta qualidade está em inglês, e a importância dos tradutores automáticos para milhões de estudantes e profissionais ao redor do mundo se torna clara. Yarowsky também aponta frutos na economia: “Será mais fácil vender produtos e serviços ao exterior, com a eliminação de custos com tradução de manuais técnicos, material promocional e e-mails”. Atualmente, turistas já se beneficiam da tecnologia na hora de escolher destinos de viagem sem levar em conta a língua local, uma vez que ferramentas como a do Google estão disponíveis em celulares. Há outros dispositivos portáteis que fazem a conversão voz-texto ou texto-voz. Soldados americanos enviados ao Afeganistão já testaram tal aparelho, que dispara mensagens sonoras escolhidas pelos militares na língua local. “É a chance de pessoas de todas as partes do mundo saberem o que as demais pensam. Assim, suas diferenças podem ser minimizadas”, diz Yarowsky. “Eu não sei o que um garoto de Bagdá pensa sobre os Estados Unidos, mas gostaria de saber.” O Google já colocou seu arsenal também à disposição de outras ferramentas. Além de verter páginas da web, seu know-how na área traduz documentos apresentados por usuários, chats de texto via Google Talk e até converte legendas de vídeos no YouTube. Para conectar línguas e mentes via celular, precisará agregar ao sistema o reconhecimento de voz, desenvolvido por várias empresas ao redor do mundo. “A tradução voz a voz é incrível, e nós adoraríamos realizá-la”, reconhece Nate Tyler, relações-públicas do Google internacional. É mais do que isso. E, embora a empresa tente despistar, o mercado espera dela a ferramenta para a próxima década.
A linguagem cotidiana já começa a ser desbravada pelos tradutores automáticos. A frase “Cê vai lá né?”, por exemplo, recebe uma tradução bastante adequada no Google Tradutor: “You going there right?”. A própria empresa reconhece, contudo, que sua máquina tem um limite claro: a literatura, sobretudo aquela que subverte a gramática e abusa da ironia, fazendo com que uma mesma palavra possa ter vários significados. “Se você tentar traduzir poesia pelo sistema, vai receber um novo tipo de poesia”, brincou, durante uma apresentação, o pai da ferramenta do Google, o alemão Franz Josef Och. Mas isso não é demérito nenhum. Há uma infinidade de estudos literários que falam da “impossibilidade da tradução” – ou que, ao menos, lembram o velho adágio “Traduttore, traditore” (“Tradutor, traidor”). “Não existe efetivamente tradução perfeita entre línguas. Cada uma delas tem estrutura e recursos idiomáticos próprios, intraduzíveis. Você pode convertê-los em termos semânticos, mas não analíticos”, diz Jacó Guinzburg, tradutor de francês, inglês, alemão, iídiche e hebraico. “Mas é claro que existem alguns trabalhos excelentes. É o caso da versão de As Minas do Rei Salomão feita por Eça de Queiroz: em inglês, é uma obra de segunda, mas se tornou primorosa em português.”
Com o avanço dos sistemas de tradução de línguas por computador, a exigência de aprender um idioma estrangeiro poderá ser abalada. Estudo da empresa de RH Catho Online mostra que o salário médio do brasileiro que domina o inglês e o espanhol é em média 125% superior ao de trabalhadores que não falam esses idiomas. Mas, se a tecnologia evoluir como se espera, a questão terá de ser revista: valerá a pena investir mais de 50 000 reais, custo de um curso completo de inglês de primeiro nível, se em tese for possível contar com as máquinas? “Quando têm a oportunidade de escolha, as pessoas preferem se expressar no idioma materno”, diz o linguista britânico David Crystal, estudioso das relações entre língua e internet. “A eficiência dos sistemas de tradução poderá provocar certo desinteresse pelo aprendizado de idiomas estrangeiros.” Mas seria um erro abandonar de vez o hábito de aprender línguas. O italiano Luciano Floridi, filósofo da informação, lembra que conhecer um idioma é uma experiência insubstituível, um mergulho em outra cultura. “Há palavras intraduzíveis: se você quer falar sobre saudade, tem de usar o português”, exemplifica. Isso, contudo, não demove o filósofo da posição de entusiasta da tradução digital, que para ele ocorrerá em um regime de perdas e ganhos. “Imagine que eu nunca tenha ido ao Brasil e certo dia vá a um restaurante típico em Londres: a receita é brasileira, mas a linguiça é inglesa. Ou seja, não é o mesmo que ir ao Brasil, mas é melhor do que nada.”
Se tivessem surgido mais cedo, como ansiava o homem desde o princípio, as ferramentas de tradução automática bem poderiam ter sido de grande ajuda em momentos cruciais da história. Durante a Batalha de Cajamarca pela conquista do Peru, em 1532, coube a um jovem nativo chamado Felipillo mediar o encontro entre os espanhóis, comandados por Francisco Pizarro, e os incas. Por má-fé ou não do tradutor, o rei Atahualpa foi levado a entender que os espanhóis queriam lhe impingir a condição de vassalo do rei espanhol. A negociação foi um fracasso e precipitou a guerra, ocaso inca. Quatro séculos depois, outro entrevero. Em 26 de julho de 1945, as forças aliadas apresentaram a Declaração de Potsdam, um ultimato que dava a Tóquio duas alternativas: rendição incondicional ou destruição total. Dois dias depois, o primeiro-ministro Suzuki Kantaro disse aos jornais de seu país que a declaração não tinha “nenhum valor”, acrescentando à frase seguinte o termo mokusatsu – que pode assumir os significados distintos de “ignorar” ou “silêncio”. O jornal The New York Times estampou em sua primeira página: “Japão rejeita ultimato aliado de rendição”. Tradutores afirmariam mais tarde que melhor seria dizer que os japoneses “silenciaram”. As bombas atômicas caíram sobre Hiroshima e Nagasaki sete e dez dias depois, respectivamente. Há dúvidas sobre o efeito que outras traduções poderiam exercer nos dois episódios. Mas o fantasma da diferença linguística perpassa a história. Agora, com os tradutores automáticos, o homem tem a chance de derrubar, com a ajuda da tecnologia, a barreira que Deus, segundo a tradição bíblica, ergueu com a Torre de Babel.
Com reportagem de Daniel Jelin, Manuela Franceschini e Nathalia Goulart